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1 de Maio de 2024

Um golpe contra os pobres está em curso

Como diz a peça de acusação a Dilma, o Brasil perdeu a cultura da responsabilidade fiscal. O resultado são os cortes nos programas sociais

Publicado por Roberto F. de Macedo
há 8 anos

A responsabilidade fiscal virou um saco de pancadas no Brasil atual. O Tribunal de Contas da União, por unanimidade, apontou graves irregularidades na gestão fiscal, em 2014, mas o governo diz que nada de mais aconteceu. Nada diferente do que fizeram “outros governos”. Diante de um gráfico, mostrando os pagamentos a descoberto, feito por bancos oficiais, a programas do governo, sem o devido repasse pelo Executivo, eminentes juristas e economistas “em defesa da democracia” dizem nada enxergar. Talvez seja a realidade que ande por baixo, no Brasil de hoje.

Dias atrás li um artigo do professor da Universidade de São PauloVladimir Safatle, em um jornal paulista, reproduzindo a narrativa do “golpe”. Seu argumento era o seguinte: não há sentido em acusar a presidente em função das pedaladas fiscais, dado que, neste país, ninguém respeita um orçamento público. Orçamentos, no Brasil, dizia o professor, não passam de “mera carta de intenções”. E mais: que, se orçamentos valessem, “não sobrava de pé um só representante dos Poderes Executivos”.

O texto poderia ser ofensivo a milhares de bons gestores públicos, Brasil afora, mas por certo ninguém deu bola. Desconheço se o referido professor algum dia analisou a execução orçamentária de um município ou Estado brasileiro. O curioso é que ele “sabe” que nenhum deles cumpre coisa nenhuma. Safatle segue a última moda da intelectualidade governista: se o PT, o melhor de todos os partidos, cometeu algum deslize, é óbvio que todos os outros já fizeram coisa muito pior. O partido pode até ter cometido algum pecado. Mas será sempre inocente, por definição, dado que ninguém é virtuoso o suficiente para julgá-lo.

A lógica complementar, nesse argumento, é mais direta: que importância tem, afinal de contas, a ideia de responsabilidade fiscal? Se o governo ficou sem caixa, em algum momento de 2014, para honrar os repasses aos programas sociais (leia o quadro na página seguinte), não seria lógico mandar os bancos públicos pagarem a conta? Qual seria a alternativa? Deixar de pagar o Bolsa Família? O seguro-desemprego? As bolsas do Fies? Foi Lula que deu o tom desse argumento, logo no início do debate sobre as pedaladas fiscais. E ele tem sido seguido à risca pela intelligentsia oficial.

Como de costume, a narrativa governista empurra alguns detalhes para debaixo do tapete. Um deles: a parte gorda das pedaladas fiscais foi feita para bancar os empréstimos a juros subsidiados, feitos pelo BNDES, dentro do PSI, o Programa de Sustentação do Investimento, a empresas brasileiras. Lula poderia ter explicado que as pedaladas serviram ao “mercado”, primeiro, e em tese beneficiaram os mais pobres, depois. Sua base militante, por certo, entenderia. De qualquer modo, correto mesmo teria sido dizer que elas serviram ao governo, que driblou a contabilidade pública e ganhou as eleições em novembro de 2014.

A “narrativa pela metade” de Lula explicita um paradoxo da democracia. Temas de gestão pública são, frequentemente, complexos, mas o discurso político requer simplificação. As pessoas dificilmente perderão um episódio de House of cards, ou uma boa cerveja, no fim do dia, tentando entender se as pedaladas foram uma “operação de crédito” disfarçada, e, portanto, vetada pelo artigo 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal, ou um simples “inadimplemento”, mera “tecnicalidade contábil”, como escutei de um intelectual amigo, dias atrás. Tudo funciona, no fim do dia, como um convite à irresponsabilidade, fiscal e hermenêutica. Talvez seja este “estado de irresponsabilidade” que democracias maduras aprendem a superar, com o tempo.

Em maio de 2000, o PT votou contra a Lei de Responsabilidade Fiscal. Dois meses depois, o partido entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, no Supremo, contra a Lei. A “narrativa” usada, à época, pelo partido, era de que a Lei faria mal aos trabalhadores. Tratava-se de uma imposição da “austeridade”, do FMI, do mercado financeiro, aquelas coisas de sempre. Cinco anos depois, já no governo, o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, fazia autocrítica da posição do partido, dizendo que a responsabilidade fiscal havia se tornado “um valor da sociedade, de caráter suprapartidário e acima de questões pessoais”.

A julgar pelo atual debate em torno do processo de impeachment, não poderia estar mais errado o simpático ex-ministro. Havia, é verdade, uma equipe econômica convencida do valor da responsabilidade fiscal, no início do primeiro governo Lula. Algo muito distante, porém, da ideia de um “valor compartilhado” em nossa cultura política.

Isso não deveria ser assim, e quiçá a atual crise sirva para algum aprendizado. Responsabilidade fiscal é um valor estratégico, em primeiro lugar, para a estabilidade da economia. O descontrole das contas públicas está na raiz da inflação, e a inflação é o pior imposto que recai sobre os mais pobres. Quem vive de salário e não tem acesso a papéis que protegem o valor de seu dinheiro.

A responsabilidade fiscal é, também, um valor essencial na democracia. Ao praticar uma pedalada fiscal, o governo está fraudando a vontade do legislador, no Congresso Nacional, a quem cabe aprovar a lei orçamentária. Aprovando um Orçamento deficitário, um Parlamento, por sua vez, pode estar enganando a sociedade, com a promessa de recursos inexistentes. Ou, ainda, comprometendo o futuro, com a contração de dívida pública. Há um problema de justiça entre gerações, aqui, que vai para além dos limites da democracia.

Por fim, a responsabilidade fiscal é um valor fundamental para a simples sustentabilidade – leia-se, seriedade – na gestão de programas sociais. Observe-se o que ocorreu com o Fies. O investimento no programa saltou de R$ 7 bilhões para mais de R$ 13 bilhões, entre 2013 e 2014. A conta, devidamente “pedalada”, surgiu no exercício seguinte, quando o programa sofreu cortes severos. A irresponsabilidade fiscal é madrasta com os mais pobres, pelo simples fato de que são eles os usuários de programas públicos, escolas e hospitais públicos. A “esquerda” pode alimentar seus mitos, mas não é o “neoliberalismo” que sucateia os serviços públicos. É seu inverso: a cultura da irresponsabilidade fiscal, o estado gastador, frágil diante do corporativismo, tomado pela burocracia e pelo vezo patrimonialista que grassa na máquina pública brasileira.

Vale uma última questão: tendo infringido a Lei de Responsabilidade Fiscal, é líquido e certo dizer que a presidente Dilma cometeu crime de responsabilidade? Deixo essa questão em aberto. Há milhões de juristas, nas redes sociais, para opinar, e 513 deputados, na Câmara, para decidir essa questão. De fato, está lá, na Lei no 1.079/50, a infração à lei orçamentária como crime de responsabilidade. A partir daí, há muitas perguntas. As pedaladas foram cometidas também em 2015? Em caso afirmativo, trata-se de um crime suficientemente grave para justificar o afastamento de uma presidente da República? É legítimo colocar, nessa conta, as heranças do mensalão, do petrolão, do financiamento ilegal da campanha presidencial, da delação do senador Delcídio, do “refúgio” ministerial oferecido a Lula? Deputados recebem um bom salário para responder a essas questões.

Meu ponto é: há razões para a admissibilidade do impeachment, como há, por certo, razões em contrário. Sem sentido é a negação da realidade. A recusa de perceber o delito cometido pelo governo contra a responsabilidade fiscal, cuja conta é paga, majoritariamente, pelos mais pobres. E que, portanto, qualquer decisão tomada pelo Congresso, nas próximas semanas, terá sido perfeitamente democrática e constitucional. Neste ponto tem razão o pessoal do governo: não vai ter golpe.

http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2016/04/um-golpe-contra-os-pobres-esta-em-curso.html

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25 Comentários

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Deve ter cometido; se a lei for seguida, não só a presidente em exercício mas também seus antecessores.

Porém, o que mais incomoda, é praticamente um jurista “secular” um dos fundadores do PT, se volta contra as ações de seus ex seguidores.

Com tantos outros motivos que poderiam tornar a ilicitude do governo mais “inteligível” e indefensável, foi se opor política e juridicamente com um ato que para a maioria das pessoas, não entendem ser crime.

Esses inocentes procedimentos governamentais, já operados em governos anteriores em menor volume, isenta a presidente em execício de ter praticado um crime; apenas “um problema de lançamentos”, uma conta-corrente, como explicado pelo ministro da fazenda, “algo de somenos”, ela, a presidente, não praticou crime.

Demonstra, a meu ver, uma certa inocência, dos juristas que assinaram a exordial. Ser crime ou não é tão importante para um julgamento com cunho político.

A ação da OAB, já é mais robusta, teria mais chance de “impressionar” o povo e fazê-lo ver o “tal do crime” cometido. Para a maioria dos brasileiros, crime é sinônimo de matar, roubar, sequestrar.

Os crimes da ação de "impeachment¨, ou seja: - processo instaurado com base em denúncia de crime de responsabilidade contra alta autoridade do poder executivo (p.ex., presidente da República, governadores, prefeitos, cuja sentença é da alçada do poder legislativo - não é algo que as pessoas julgam ser ruim, porém é nefasto, maléfico e irresponsável.

Agora, se deixar de pensar somente na contenda política, onde cada um “arranja” para si a razão, seria muito mais simples se fossem arrazoadas as ações da presidente: arrogante, impertinente, totalitária, incompetente e, também, olhar o que está acontecendo com as pessoas: dificuldades financeiras, desemprego, falência, descredito no país e um atraso de décadas no avanço social, político, econômico.

Ou seja, não se discute, na verdade, a legitimidade da posse através de votos válidos, de eleições válidas, mas sim a nefasta passagem dessa senhora pela presidência da república. Se ela tivesse um pouco mais de humildade e de bom senso pararia para pensar em sua “capacidade/falta dela” de permanecer à frente do governo. continuar lendo

Daqui a pouco, para PTralhas,
COMER CRIANÇAS SERÁ INOCENTE PROCEDIMENTO.

Será que este povo não lê o que escreve?
Ou não se manca com os absurdos?
Acho que não.
A lavagem cerebral não lhes permite nem admitir que um fundador do PT tenha chegado à conclusão de que o Partido que muitos ajudamos a chegar ao governo, vendeu sua alma para o diabo.
Ou será que já nasceu endiabrado e nós só agora percebemos?

Afinal, Celso Daniel foi morto há tempos e só agora descobrimos o profundo envolvimento das "inocentes práticas" PTralhas na dilapidação do patrimônio público, em favorecimento de um projeto de poder e enriquecimento pessoal de suas cúpulas dirigentes.
O Véio continuar lendo

Daqui a pouco, para PTralhas,
Comer criancinhas SERÁ INOCENTE PROCEDIMENTO.

Será que este povo não lê o que escreve?
Ou não se manca com os absurdos?
Acho que não.
A lavagem cerebral não lhes permite nem admitir que um fundador do PT tenha chegado à conclusão de que o Partido que muitos ajudamos a chegar ao governo, vendeu sua alma para o diabo.
Ou será que já nasceu endiabrado e nós só agora percebemos?

Afinal, Celso Daniel foi morto há tempos e só agora descobrimos o profundo envolvimento das "inocentes práticas" PTralhas na dilapidação do patrimônio público, em favorecimento de um projeto de poder e enriquecimento pessoal de suas cúpulas dirigentes.
O Véio continuar lendo

O que pode fazer um povo que nem sabe qual o papel de cada cargo no poder legislativo.
Pergunte ao povo o que deve fazer um vereador em seu "trabalho"? Ou então, qual a diferença de atribuições de um Deputado Federal e um Senador? Se não sabem isso, como podem saber o que é Responsabilidade Fiscal.
Tivemos um Presidente, o mais honesto do mundo, que mal e mal sabe ler e que fez de tudo para que essa Lei fosse rejeitada pois sabia que, para seu partido se perpetuar no poder, iria necessitar ser irresponsável com o dinheiro dos contribuintes. E foi. E quebrou o País. E ainda quer o poder pois sem esse poder, se apurada ar Responsabilidade, irá apodrecer na cadeia. continuar lendo

Fico impressionado com a falta de caráter de alguns brasileiros! Ou seria falta de conhecimento da realidade? Informe-se sobre o valor das pedaladas! Informe quanto custou os 64% que o Judiciário e todo o primeiro escalão da Republica exigiu de aumento em dezembro/2015 e janeiro/2015, tudo pago em janeiro de 2016, prorem retroativo! Informe-se sobre o aumento do valor do fundo partidário de 2015 para 2016; o valor foi mais que triplicado! O artigo de Vladimir Saflate etá correto! Nunca existiu orçamento no Brasil e nunca existirá! Aqui em Minas um outro partido Governou por 20 anos seguidos e o Estado está literalmente quebrado alem de ser o segundo mais endividado! Busque na internet sobre as propagandas da época sobre "gestão" com avaliação positiva de órgãos internacionais! Tudo mentira! Em suma, os Tribunais de contas não valem nada! Até porque seus Ministros não são concursados e são nomeados para prestarem favores aos Governos e ferrar os inimigos! Os TC são uma vergonha! continuar lendo

Bom,

Iss Valeria dizer que o Judiciário é co-autor dos crimes de responsabilidade fiscal??? Já que, como ocorreu no Rio de Janeiro ele determinou o bloqueio de recursos até mesmo da pasta d asaude, visando unicamente garantir os recursos para o pagamento, inclusive de retroativos???

E neste caso ainda, o TCs são cúmplices do crime de responsabilidade fiscal??? continuar lendo

Eu fico impressionada é com a falta de educação de outros brasileiros, típicos petistas que para defender a petralhada negam a realidade. Querer legalizar seu erro tão somente porque no passado fato semelhante já tenha ocorrido é ridículo, é o mesmo que dizer que posso descumprir totalmente a legislação em qualquer sentido, porque certamente alguém já o fez antes de mim, portanto não posso ser punida. ACORDA! continuar lendo

O não cumprimento das metas fiscais (com alguma tolerância) deveria ser motivo para o afastamento de qualquer cargo público, mesmo ajustes nas contas, deveria implicar em punição ao administrador, o orçamento não pode ser uma obra de ficção.Por outro lado , "ACREDITO" que a lei de responsabilidade fiscal não é cumprida pela quase totalidade dos governos, o fato é, a exemplo do TCU que julgou todas as contas do executivo, dos governos FHC e Lula á toque de caixa para em fim RECUSAR as contas da Dilma, nos estados e municípios o ritmo é o mesmo,a unica a razão para apenas ACREDITAR que os estados e municípios não cumprem a lei de responsabilidade fiscal, é que os governadores e prefeitos via de regra, não tem suas contas julgadas ou fiscalizadas. continuar lendo